Tiago C. P. dos Reis Miranda, Doutor em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), esteve na Universidade de Cabo Verde em mobilidade e, em entrevista, partilhou um pouco de sua experiência e dos seus estudos. No momento, o historiador está ligado ao Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades (CIDEHUS) da Universidade de Évora, onde desenvolve trabalhos de história política, de história da cultura e do património, com destaque para as áreas da escrita, do livro e da leitura.
- Em que âmbito se enquadra a missão que realizou em Cabo Verde?
A minha missão em Cabo Verde enquadra-se no âmbito de um projeto europeu denominado “Resistance: rebeliões e resistência nos impérios ibéricos, séc. XVI-1850”. Sob a liderança da Prof.ª Doutora Mafalda Soares da Cunha, da Universidade de Évora e também do CIDEHUS, essa iniciativa, começada em 2018, reúne cerca de 100 investigadores provenientes de 12 entidades de pesquisa e ensino, e de nove diferentes países: três da Europa (Portugal, Alemanha e Espanha), cinco das Américas (Argentina, Brasil, Chile, Estados Unidos e México) e um africano: Cabo Verde. Os nossos principais objetivos prendem-se com o estudo e a compreensão de fenómenos de luta e resistência de sujeitos historicamente desfavorecidos, descriminados ou dominados. Pretendemos, portanto, dinamizar a publicação de novos trabalhos académicos, não descurando, contudo, a elaboração de materiais de apoio ao ensino ou de divulgação social mais alargada, como, por exemplo, exposições de cartazes. O projeto “Resistance” aposta, igualmente, na produção de vídeos e de entrevistas, disponibilizados on-line, sem restrições. Especificamente em relação a Cabo Verde, cabe talvez destacar que se prepara para o início de junho o VII Simpósio do projeto, no campus da Uni-CV na Cidade da Praia.
- Quais foram as principais atividades realizadas ao longo da missão?
Em meados de janeiro, ajudei no transporte de uma exposição de cartazes para São Vicente, e, juntamente com a minha colega Fernanda Olival, fi-la chegar às mãos da responsável pela área de História da Escola Secundária José Augusto Pinto, no Mindelo. Dias depois, participei igualmente na inauguração desse material, entretanto montado na ludoteca, para a leitura e o estudo dos alunos. Pretende-se que nos próximos meses a itinerância iniciada em Santiago se estenda ao maior número possível de estabelecimentos de ensino das duas ilhas ocidentais do grupo do Barlavento.
Na Cidade da Praia, e tendo em conta a importância crescente das chamadas “novas tecnologias”, plasmada também no “Resistance”, realizei no ANCV um minicurso de quatro horas intitulado: “A informação na Era Digital: fontes impressas e fontes manuscritas”. Mais tarde, participei nas II Jornadas Escolares do Tarrafal, ficando responsável pela condução dos trabalhos dos docentes da área de História. Ressalto, por fim, uma visita que realizei ao campus da Uni-CV na Assomada, Santa Catarina, a convite do Prof. Doutor António Correia e Silva, para expor algumas noções sobre a recente evolução dos grandes repertórios digitais de interesse académico.
- Qual é a relevância da pesquisa online para a História de Cabo Verde, em particular?
Nas últimas décadas, deixou de ser possível ignorar o espaço da internet, porque ele passou a fornecer-nos acesso praticamente instantâneo a um número espantoso de recursos. A informação “virtual” poupa-nos tempo e dinheiro. Dá-nos a impressão de termos o mundo ao alcance dos dedos. Especificamente no caso de Cabo Verde, o mundo que chega pela internet permite matizar uma série de desvantagens competitivas derivadas da realidade geográfica. Os repertórios que estão disponíveis aos europeus ou aos norte-americanos, via de regra estão também disponíveis aos nacionais de outros Estados. No campo da História, parecem-me especialmente importantes para os cabo-verdianos os recursos bibliográficos e documentais dos sites da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP), da Direção Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas (DGLAB), também de Portugal, da Fundação Biblioteca Nacional do Brasil (sede oficial do Projeto Resgate – Barão do Rio Branco) e de algumas grandes instituições de ensino e de pesquisa desses dois países, como a minha alma mater, onde se encontra a notável Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.
- Uni-CV – Os estudantes muitas vezes precisam de materiais bibliográficos para a realização dos seus trabalhos académicos, que nem sempre encontram nas bibliotecas de impressos a que têm acesso. De que forma as bibliotecas virtuais podem constituir, se não a alternativa, ao menos o complemento das bibliotecas tradicionais?
A esse respeito só posso dizer que todas as universidades e todos os cursos superiores que dominam os rankings internacionais apostam, sem hesitação, em serviços de apoio bibliográfico para professores e alunos, onde se encontram repertórios digitais dos trabalhos produzidos dentro da própria instituição ou seu nome; indicações para pesquisa e consulta de sites similares, nacionais e estrangeiros, e o acesso condicionado a plataformas de disponibilização comercial de livros e artigos científicos, como o JSTOR, o Project MUSE e a BRILL. Os gestores desses serviços de apoio não são geralmente informáticos: são bibliotecários com formação informática ou gestores de informação digital. Convém, no entanto, que continuem a existir profissionais com uma visão de conjunto das bibliotecas, nela integrando todos os tipos de suportes representados nos seus acervos.
- Sendo o livro antigo um dos seus interesses como investigador, podia dizer-nos se nas suas pesquisas encontra livros que tenham relevância para o conhecimento da História de Cabo Verde?
Uma das obras que figuram na biblioteca do Colégio Militar de Lisboa, onde há anos desenvolvo démarches, é a Encyclopédie Méthodique par ordre des matières…, publicada entre 1782 e 1832. Constituem-na, ao todo, mais de 200 volumes. Poucas instituições em Portugal possuem um conjunto tão completo. Para fazer uma pesquisa nesse colosso, tendo em mente a história do arquipélago de Cabo Verde, logo se perceberá ser necessário imenso tempo de dedicação, porque a obra praticamente não traz qualquer índice que possa ajudar. O advento do digital tornou, no entanto, muito fácil outra abordagem: através dos prompts de busca do Google books e mesmo da Gallica (em geral, mais fiável) pode-se pesquisar a expressão “Cape-Vert” em todos os volumes da Encyclopédie méthodique, disponíveis nos dois repertórios. De imediato se verifica a ocorrência de informações pertinentes, em diversas matérias: desde a Geografia Física ao Sistema Anatómico dos Mamíferos.
Quando bem-feita, a descrição de exemplares de livro antigo tem porventura a vantagem de catalisar o interesse dos investigadores e de eventualmente lhes facilitar o acesso à leitura dos textos. Por exemplo: no catálogo de livro antigo da Biblioteca do Exército Português, que se encontra on line, há duas obras em que as Ilhas de Cabo Verde aparecem incluídas no título. A primeira é a Milicia prática, e manejo de infantaria, de 1740, em dois volumes, escrita por Bento Gomes Coelho, identificado na folha de rosto como cavaleiro da Ordem de Cristo e antigo governador de Cabo Verde e da Guiné (1733-1737). Trata-se de um livro relativamente raro, de reprodução não disponível no Google books, e de que a BNP só parece ter um conjunto em bom estado. A segunda obra é a Sentença proferida na Caza da Supplicação contra os réos compreendidos na devaça que S. Majestade Fidelissima mandou tirar pela morte do bacharel João Vieira de Andrade, sendo ouvidor nas Ilhas de Cabo Verde, do ano de 1764. Também nesse caso, a BNP só apresenta no seu catálogo um exemplar em condições de consulta, e o Google books volta a ser imprestável para a leitura do texto. Mas os estudos desenvolvidos para a elaboração do referido catálogo levaram, felizmente, a Biblioteca do Exército a decidir tornar acessível uma reprodução digital dos dois volumes de Bento Borges Coelho. E com um simples “clique” no hyperlink que consta no pdf citado, tornou-se assim possível conferir à distância o seu conteúdo. O mesmo se pode dizer em relação à menos extensa, embora, para o efeito, mais pertinente Sentença… da Casa da Suplicação, certamente conhecida em suas linhas gerais pelos seguidores dos livros de Germano Almeida.