Primeiro painel do seminário internacional do CIGEF analisa conceitos, políticas públicas e a participação política das mulheres nos PALOP e no Brasil

O primeiro painel do seminário internacional “Repensar o Género a partir de África: perspetivas globais e locais” reuniu, na Universidade de Cabo Verde, investigadoras e investigadores de Moçambique, Brasil, Cabo Verde e Guiné-Bissau para debater epistemologias e políticas sobre o género, articulando críticas ao modelo dominante de desenvolvimento, leituras situadas das realidades africanas e trajetórias de participação política das mulheres.
O painel “Epistemologias e políticas sobre o género” integrou a programação do seminário internacional organizado pelo Centro de Investigação e Formação em Género e Família (CIGEF) da Universidade de Cabo Verde (Uni-CV), no âmbito das comemorações dos dezassete anos do centro.
A sessão decorreu em formato híbrido, com mesa presencial no Campus do Palmarejo Grande e intervenções remotas a partir de Moçambique e do Brasil, envolvendo docentes, investigadoras, estudantes e representantes de organizações da sociedade civil. A moderação coube ao Professor Silvino Evora, docente da Uni-CV, que destacou o contributo do CIGEF para o debate académico e público sobre género em Cabo Verde e na região.
Críticas ao uso do conceito de género no “mundo do desenvolvimento”
A primeira comunicação esteve a cargo da Dra. Sandra Manuel, docente e investigadora da Universidade Eduardo Mondlane e do Instituto de Pesquisa em Políticas Públicas e Cultura (Caleidoscópio), membro do corpo editorial da revista Feminist Africa.
Partindo de um artigo preparado para o próximo número da revista, a investigadora analisou a forma como a cooperação internacional para o desenvolvimento tem apropriado o conceito de género, defendendo que a leitura dominante, inspirada em feminismos ocidentais, é aplicada de forma universal, binária e pouco sensível às dinâmicas locais.
Segundo a autora, esta abordagem tende a despolitizar o género, reduzindo-o a variável estatística centrada na contagem de homens e mulheres, e perde de vista estruturas de organização social como a senioridade, sistemas matrilineares e formas específicas de poder feminino descritas por autoras africanas. Sandra Manuel identificou ainda três efeitos problemáticos: a fragmentação e banalização do conceito; a construção de um discurso de crise centrado na rapariga como “vítima” principal; e a transformação das mulheres do Sul Global em ativo económico em narrativas neoliberais de empoderamento.
No caso moçambicano, sublinhou a dependência da investigação de financiamentos internacionais, o que condiciona agendas e metodologias, mas apontou também trabalhos que, a partir de realidades locais, recuperam categorias como Sicigal ou Sungucati para repensar relações de género e autoridade feminina.
Significados de género nos estudos sociais moçambicanos
O Dr. Hélder Amâncio, igualmente da Universidade Eduardo Mondlane, apresentou a comunicação “Significados do género nos estudos sociais moçambicanos”. Com base em revisão de literatura e entrevistas a investigadoras pioneiras, traçou a trajetória do conceito em três momentos:
- no pós-independência, a centralidade da categoria “mulher” enquanto sujeito revolucionário, num quadro de Estado socialista e de mobilização pela Organização da Mulher Moçambicana;
- no pós-guerra civil, a adoção do termo “género” em políticas públicas e programas académicos, influenciada por agendas internacionais e conferências como Pequim;
- desde os anos 2000, a consolidação de abordagens críticas e decoloniais, que procuram articular o conceito com epistemologias situadas e realidades concretas de Moçambique.
O orador sublinhou o duplo movimento de incorporação de conceitos oriundos do Norte Global e emergência de epistemologias locais que reconfiguram o campo dos estudos de género.
Participação política das mulheres nos PALOP e no Brasil
As investigadoras Vera Gaspareto e Maria Eduarda Taques, da Universidade Federal de Santa Catarina (Brasil), apresentaram resultados de uma pesquisa desenvolvida no âmbito do projeto “Africanas” sobre o lugar das mulheres na política nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP) e no Brasil.
Com base em literatura especializada e entrevistas em Moçambique e Angola, identificaram continuidades coloniais e patriarcais que condicionam o acesso das mulheres a cargos de decisão. Apresentaram dados de representação parlamentar, destacando, entre outros, os valores de Cabo Verde (quarenta e quatro por cento), Angola (cerca de trinta e nove por cento) e Moçambique (mais de quarenta e dois por cento), bem como a existência de leis de paridade ou de quotas em vários países.
As autoras salientaram que a presença numérica não garante, por si só, justiça ou transformação das práticas políticas, chamando a atenção para a violência política de género, a instrumentalização de valores de maternidade para legitimar trajetórias e a necessidade de fortalecer observatórios e redes feministas que documentem estas dinâmicas.
Lei da Paridade e percurso das mulheres na política cabo-verdiana
Na comunicação seguinte, a Dra. Anileza Gonçalves analisou “O percurso das mulheres na política em Cabo Verde e o impacto das cotas de género no nosso país”, retomando resultados da sua tese de doutoramento sobre seleção de candidatos e representação feminina no parlamento.
Recordou que, desde a independência, a Constituição consagra o princípio de igualdade, mas que a presença de mulheres na Assembleia foi inicialmente reduzida: em mil novecentos e setenta e cinco foi eleita uma deputada, registando-se uma evolução gradual até ao período democrático. A criação do Instituto Cabo-verdiano para a Igualdade e Equidade de Género (ICIEG), a aprovação de planos nacionais de igualdade e da rede de mulheres parlamentares foram referidos como marcos deste percurso.
A oradora centrou-se depois na Lei da Paridade de 2019, que estabelece uma representação mínima de quarenta por cento de cada sexo nas listas e regras de alternância nas primeiras posições. De acordo com os dados apresentados, em dois mil e vinte e um as mulheres passaram a representar 48,3% das candidaturas e 37,5% dos mandatos parlamentares, evidenciando o impacto direto do diploma. Utilizando um índice de representação e o conceito de “posições realistas”, sublinhou, contudo, que persistem assimetrias entre círculos eleitorais e que a eficácia da lei depende também da vontade política das direções partidárias e da fiscalização do seu cumprimento.
Agroecologia e igualdade de género na Guiné-Bissau
O painel encerrou com a intervenção do Dr. Rui Valdemar, que apresentou a experiência da organização não-governamental guineense Tiniguena (“esta terra é nossa”) na promoção do desenvolvimento sustentável e da igualdade de género nas zonas rurais da Guiné-Bissau.
A partir de práticas de agroecologia e de valorização dos recursos naturais e culturais, a ONG tem trabalhado desde mil novecentos e noventa e um com mulheres e comunidades, articulando segurança alimentar, preservação ambiental e reforço da participação feminina em espaços de decisão local.
O período de debate permitiu aprofundar questões sobre financiamento da investigação, liberdade académica e produção de conhecimento situado nos PALOP, bem como os efeitos práticos da Lei da Paridade em Cabo Verde e o recurso a discursos de maternidade na legitimidade política das mulheres. As intervenções convergiram na necessidade de reforçar cooperações académicas e redes sul-sul que sustentem agendas próprias de investigação e ação em matéria de género.