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A forma como Cabo Verde recorda a sua luta de libertação não é uma história fechada, mas sim um “dispositivo mnemónico” que continua a ser ativado, contestado e a moldar o presente, 50 anos após a independência. A tese foi defendida pelos investigadores portugueses Inês Nascimento Rodrigues e Miguel Cardina, do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, durante a conferência “Caminhos e Paisagens da Memória”, realizada na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV).

O evento, uma parceria entre a Faculdade de Ciências Sociais, Humanas e Artes da Uni-CV e o projeto de investigação europeu GHOST, serviu de palco para apresentar o livro dos autores, “O Dispositivo Mnemónico”, que analisa como a memória da luta foi construída, desconstruída e disputada nas últimas cinco décadas no arquipélago.

Para os investigadores, a memória funciona como um espaço de edição contínua, onde a sociedade, os grupos e o Estado selecionam o que lembrar e o que esquecer. "Todos somos, de algum modo, curadores da memória", afirmou Inês Rodrigues, explicando que esta seleção é influenciada por fatores afetivos, políticos e simbólicos.

No caso de Cabo Verde, os autores identificam três grandes "paisagens da memória" que se sucederam e hoje coexistem de forma conflituosa.

1. A Luta como "Certidão de Nascimento" (1975-1990)

A primeira paisagem foi construída pelo PAIGC/PAICV no pós-independência. A luta de libertação e a figura de Amílcar Cabral foram estabelecidas como o berço da nação e o principal património nacional. "Cabral era apresentado como fundador da nacionalidade, presente no hino, nos selos, na moeda e na Constituição", explicou Inês Rodrigues. Esta narrativa reforçava a identidade africana do país e glorificava o heroísmo e o sacrifício, condenando o colonialismo.

2. A Viragem "Anti-Anticolonial" (Anos 90)

Com a transição para a democracia em 1991, surge uma nova paisagem que os autores designam como "anti-anticolonial". Em vez de apagar a memória da luta, esta nova fase contrapôs-se a ela, revalorizando símbolos do passado colonial.

O regresso da estátua do navegador português Diogo Gomes ao Plateau, na Praia, logo após as eleições, foi o marco simbólico desta mudança. "O seu regresso foi saudado na capa do jornal 'Voz di Povo' como a libertação do 'primeiro preso político'", recordou Miguel Cardina. Seguiram-se a reposição de outros monumentos coloniais, a alteração da bandeira e do hino, e a substituição da efígie de Cabral pela do escritor Baltasar Lopes da Silva nas notas de escudo. Os investigadores chamam a este processo uma "descabralização" e "desafricanização" dos símbolos nacionais.

3. Uma paisagem em disputa (atualidade)

Hoje, Cabo Verde vive numa terceira paisagem, definida como "compósita", onde elementos das duas fases anteriores convivem de forma tensa. Amílcar Cabral voltou a ser evocado, mas o seu significado é mais diverso e, por vezes, popular.

Esta convivência gera conflitos visíveis no espaço público. A estátua de Diogo Gomes ocupa um lugar de destaque junto ao palácio presidencial, enquanto o Memorial Amílcar Cabral, uma oferta da China criticada pela sua estética, está numa zona de trânsito. "Estes dois monumentos, a meio quilómetro um do outro, simbolizam esta paisagem compósita", afirmou Inês Rodrigues.

Esta aparente conciliação é cada vez mais desafiada por jovens ativistas e artistas, muitos ligados à diáspora, que, influenciados por movimentos como o Black Lives Matter, trazem para o debate temas como o racismo e as heranças coloniais. "São gestos que materializam disputas pela memória, mostrando que ela não é um passado fixo, mas um campo de luta no presente e sobre o presente", concluiu a investigadora.

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