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Daniel nascido na Boa Vista de mãe “indígena” no dia 1 de fevereiro de 1925, ali viveu a primeira infância. Menino na década de Trinta que viu nascer a 'Claridade' — até que ponto esse manifesto pela caboverdianidade estará presente na obra, entre arte e compromisso, do 'exilado na pátria'?

Esta evocação no 97º ano do menino futuro poeta luso-caboverdiano tem um ponto de partida: uma leitura paralela na Faculdade de Letras de Lisboa, em 1982-3. E nessa descoberta quase casual, a arte unida ao compromisso  -- substância que se elabora sob o influxo do ‘rio subterrâneo’ -- fixa-se como um marcador atualizado para sempre  nessa imagem forte, da profundidade da vital fonte de vida. 

Lírico o “eu” que se exprime nesta narrativa --O Manuscrito na Garrafa (1960)-- que se lê como um bildungsromanesclarecido pela obra poética, esta, mais desvendada enquanto objeto de estudos mais divulgados.

Uma etapa, e esta é a narrativa formadora na linha do bildungsroman goethiano, já presente em Chiquinho que (ainda) não sabemos se leu, ou dessa epopeia lírica cantada que fala do destino-sina do cabo-verdiano. Narrativa e única obra em prosa do boavistense aculturado e inquieto na terra da nossa confluência é, pois, o Manuscrito na Garrafa quemarca a relação romântica centrada na ‘Guida’ e no narrador protagonista. 

Mais uma etapa na biografia de Daniel Filipe, que menino o pai metropolitano levou para a “Lisboa” que era a metonímia do Portugal europeu. “Levado de casa-colo da minha mãe para longes terras”, elaboraria se Bernardim/Binmarder o tivesse interpelado. Ou se o destino não o tivesse levado cedo demais, em 1964, para o ignoto universo que nem teve tempo de conceber, que isso é obra para os velhos. Morrem jovens os que os deuses amam?

Daniel nascido na Boa Vista de mãe “indígena” no dia 1 de fevereiro de 1925, ali viveu a primeira infância. Menino na década de Trinta que viu nascer a 'Claridade' — até que ponto esse manifesto pela caboverdianidade estará presente na obra, entre arte e compromisso, do 'exilado na pátria'?

Pátria lugar de exílio. A obra da maturidade, 1963, epítome da sua criação, deixa escapar essa expressão lírica que se desenvolve como apelo sentido acerca da situação dos deserdados – o “pequeno empregado” absorto num ”erro de contas” ou a “operária de fábrica com três filhos famintos”. 

Deserdados a quem ele poeta não chega. Poeta “inútil”, deduza-se do verso “Minha África inútil”. A angústia de não bastar a arte para comunicar com os deserdados sem voz.

A compreensão desse autoflagelamento -- contido nesse sentimento expresso do poeta  que se sente “inútil” -- tem de fazer-se no contexto histórico cultural desse ano,  1962 (v.6): o mundo lusófono mergulhado na luta pela independência da África Lusófona. Os soldados do império que vão para a guerra de pé e começam a regressar estropiados ou num caixão no seu derradeiro adeus português.

O apelo emotivo do poeta que se sente “inútil”, à evocação dessa “minha África inútil” (verso 16).

Cântico da Independência

A “minha África inútil” decorre da absurdidade da sua espera em Lisboa. Espera pela liberdade que vem de Paris distante. Ou da minha África inútil” – para si que se deixa ficar pelo Rossio lisboeta junto à estação que trará novidades de Paris, luz ao fundo do túnel nos longos decénios do Estado Novo.

O Cântico da Independência. O rio que corre escondido na Pátria lugar de exílio – descoberta de leitura nesse fim da adolescência.

Pátria lugar de exílio como a pátria para onde regressaria Daniel Filipe, findo o nosso exílio imposto pela necessidade de prosseguir para além do ensino primário que era tudo quanto nos oferecia a ilha natal.

O futuro poeta, que foi levado da casa-colo da sua mãe para longes terras”. Se não tivesse ido, teria entrado na frente da luta através da arte? Decerto que sim, mas os caminhos e metas seriam outros. 

E chegariam por outros meios ao/à  leitor/a de 2022, este exemplo da arte identificado “pelo estilo que é tudo”, como a sintetizou o clássico francês La Béotie. A leitura dos bons sempre nos vai ajudar a exprimir melhor o eu profundo e a nossa compreensão do mundo. Cada vez mais urgente num mundo que lê depressa e escreve rápido demais.

 

Professora Lourdes Lima

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