Especialistas analisam vulnerabilidade familiar, igualdade de género, assédio no ensino superior e presença feminina nas STEM

Um painel do seminário internacional promovido pelo CIGEF da Universidade de Cabo Verde reuniu investigadoras e investigadores para debater o impacto dos papéis de género na família, os desafios da igualdade em Cabo Verde, o assédio sexual no ensino superior e a sub-representação feminina nas áreas STEM, a partir de estudos recentes.
Género, família e vulnerabilidade na adolescência
Na primeira comunicação, a Dra. Helga Carvalho, docente da Uni-CV e investigadora do Centro de Investigação e Formação em Género e Família (CIGEF), apresentou resultados de uma pesquisa qualitativa sobre famílias cabo-verdianas com adolescentes em situação de vulnerabilidade, marcada por consumo de substâncias, gravidez na adolescência e violência juvenil.
O estudo, realizado com dezoito representantes de famílias, recorreu a conceitos de ciclo de vida, vulnerabilidade psicossocial e suporte social. As narrativas recolhidas evidenciam a predominância de configurações monoparentais femininas, arranjos multigeracionais e forte presença de mulheres na função parental principal, associadas a instabilidade financeira e baixa escolaridade.
Segundo a investigadora, estas famílias relatam ausência de referências familiares positivas, conflitos conjugais persistentes, sobrecarga emocional e económica das mães, pouca supervisão paterna e dificuldades em impor limites. Este quadro reforça papéis tradicionais de género, em que as mães acumulam responsabilidades emocionais e económicas, agravando o stresse e dificultando o diálogo com os adolescentes.
As conclusões apontam o género como “determinante invisível” da vulnerabilidade familiar, com impacto na capacidade de proteção psicossocial. A investigadora defende a reorganização dos serviços de saúde e educação com enfoque explícito em género e família, através de abordagens multidisciplinares, educação parental, apoio psicossocial e mobilização comunitária, de forma a transformar vulnerabilidades em recursos de resistência.
Igualdade de género, racismo e herança colonial em Cabo Verde
A Dra. Mirtes dos Santos, docente da Uni-CV, trouxe uma reflexão sobre os desafios da igualdade de género no país, cruzando o pensamento de Oyèrónkẹ́ Oyěwùmí e Lélia Gonzalez. Partindo da crítica à universalização da categoria “género” a partir de matrizes ocidentais, a oradora sublinhou a necessidade de considerar os contextos históricos africanos, marcados por estruturas familiares matrifocais e redes comunitárias femininas, em articulação com práticas patriarcais introduzidas pela colonização.
A intervenção destacou que a compreensão das desigualdades de género em Cabo Verde exige também o reconhecimento do racismo e dos legados coloniais, incluindo a história de mulheres africanas que tiveram filhos sem reconhecimento paterno e a persistência de famílias monoparentais femininas.
Embora o país disponha de um quadro jurídico-institucional robusto, com instrumentos como a Lei da Paridade e a Lei da Violência Baseada no Género, a oradora identificou desafios persistentes: normas culturais patriarcais, sub-representação feminina em cargos de chefia, violência simbólica e doméstica e dificuldades de acesso ao emprego formal em contextos periféricos. A promoção da igualdade de género, defendeu, deve assentar em perspetivas endógenas, intersecionando género, raça e história e combatendo o “epistemicídio” das experiências africanas.
Assédio sexual no ensino superior e cultura institucional
O Dr. Juvêncio Nota, doutor em Estudos de Género e autor do livro Assédio Sexual no Ensino Superior, apresentou os resultados de uma etnografia institucional em três universidades públicas moçambicanas, centrada nas experiências de assédio sexual vividas por trinta e nove docentes e investigadoras.
As entrevistas indicam que quase todas as participantes já sofreram assédio ou conhecem casos próximos. As situações ocorrem sobretudo em salas de aula, gabinetes partilhados e corredores, envolvendo professores e estudantes como principais perpetradores. A pesquisa conclui que o assédio sexual é uma prática estrutural, institucionalizada e normalizada, enquadrada numa lógica que o autor descreve como falogocêntrica e ligada à afirmação de uma masculinidade hegemónica.
Segundo o investigador, os poucos casos denunciados têm fraco seguimento, devido a mecanismos informais de proteção entre homens. As docentes recorrem frequentemente ao silêncio ou partilha restrita entre colegas, com impactos negativos na produtividade e no sentimento de pertença académica. O estudo aponta a ausência de mecanismos institucionais de proteção e políticas específicas como fator que sustenta a “cultura de assédio” nos espaços universitários.
Mulheres nas STEM e projeto BIAS em Cabo Verde
A última comunicação foi apresentada pela Dra. Clementina Fortado, investigadora da Uni-CV e antiga diretora do CIGEF, em coautoria com Luís Rodrigues, no âmbito do projeto internacional BIAS, que envolve instituições de Cabo Verde, Costa do Marfim, Espanha e Portugal.
O diagnóstico nacional, de natureza quali-quantitativa, analisou a situação das estudantes nas áreas de Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática (STEM) em instituições de ensino superior cabo-verdianas. Os resultados indicam uma idade média de 22,5 anos e uma forte concentração feminina nas áreas de saúde, com menor presença nas engenharias e ciências da computação.
O interesse pessoal surge como principal motivação para a escolha de cursos STEM, com a maioria das estudantes a referir liberdade de escolha e elevada confiança no percurso académico, incluindo intenções de prosseguir estudos de mestrado e doutoramento. No entanto, persistem estereótipos de género e constrangimentos ligados à conciliação dos estudos com tarefas domésticas e cuidados familiares.
O estudo evidencia ainda a importância de modelos de referência femininos: embora 76% das inquiridas indiquem ter um “role model”, a maioria reconhece a escassez de mulheres visíveis nas STEM. Entre as razões ponderadas para abandono, surgem a saúde mental, o stresse e dificuldades financeiras.
As recomendações passam por programas estruturados e contínuos de apoio, criação de creches, reforço da mentoria, maior visibilidade para mulheres nas STEM e campanhas nacionais de desconstrução de estereótipos. As autorias consideram que as evidências recolhidas validam a pertinência do projeto e sublinham a necessidade de ações diretas para diminuir a sub-representação feminina nestas áreas.