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Renata Araújo, professora de História da Arte na Universidade do Algarve, encontra-se numa missão académica na Universidade de Cabo Verde (Uni-CV). Em entrevista ao Gabinete de Comunicação e Imagem, a professora partilhou suas atividades e da colaboração estabelecida com a universidade. Nascida em Belém do Pará, Renata Araújo é especialista em História da Arte com formação em Arquitetura e Urbanismo no Brasil, e mestrado e doutoramento concluídos na Universidade Nova de Lisboa. Desde 2001, é docente na Universidade do Algarve, onde leciona em programas ligados ao Património Cultural e Arqueologia.

A visita de Araújo à Uni-CV decorre sob o programa Procultura+ da Associação das Universidades de Língua Portuguesa, que fomenta a troca de conhecimentos através da mobilidade docente. "Estabeleci uma parceria com a Professora Antonieta Lopes, da Uni-CV, na área de gestão do património. Após a minha estadia aqui, aguardamos com expectativa a visita da Professora Antonieta na Universidade do Algarve," explicou Araújo.

A professora também destacou a relevância de trazer essas discussões para o contexto de Cabo Verde, enfatizando como a mandioca se integra na alimentação e cultura locais. A entrevista concluiu com uma reflexão sobre o papel das universidades na promoção de uma gestão sustentável do patrimônio vegetal. "As universidades são fundamentais para desenvolver e aprofundar a consciência sobre a importância das plantas na nossa vida e no nosso planeta," concluiu Renata Araújo.

1-     Diga-nos quem é Renata Araújo e em que contexto visita a Uni-CV.

Sou natural de Belém do Pará. Fiz a minha graduação no Brasil, em Arquitetura e Urbanismo e depois, em Portugal, fiz o mestrado e o doutoramento em História da Arte, na Universidade Nova de Lisboa. Sou, desde 2001, Professora da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade do Algarve, onde leciono na licenciatura em Património Cultural e Arqueologia, no Mestrado em História e Patrimónios e no Doutoramento em Estudos de Património. Venho a Uni-CV no âmbito do programa Procultura+ da AULP, Associação das Universidades de Língua Portuguesa, que promove a mobilidade e o intercâmbio de professores. A intenção do programa é que professores de universidades distintas trabalhem em conjunto, por área disciplinar e instituição, para troca de conhecimentos e partilha de experiências. Eu e a Professora Antonieta Lopes, da Uni-CV, formamos um destes grupos, na área de gestão do património. Desta vez vim eu a Cabo Verde e a seguir teremos todo o gosto e estamos ansiosos, para receber a Professora Antonieta na Universidade do Algarve. 

2-     Foi surpreendente o facto de nos ter trazido uma reflexão e investigação sobre o mundo vegetal, o que não é muito comum na historiografia. Além disso, colocou a questão de modo muito acutilante. Porquê?

Os meus principais temas de investigação envolvem questões relacionadas com a história da urbanização, em especial a formação de cidades criadas a partir do século XVI, no que, aos olhos dos europeus, era o dito “mundo novo”. Há, neste contexto, uma espécie de paradigma inicial que se sustenta sobre a ideia de alteridade, de diferença, que é intrinsecamente hierárquica e que não é uma só. Veja-se, desde logo, a diferença que é projetada para a própria natureza daquela parte do mundo que, embora com algum encantamento, é vista como estranha, como desconhecida. E além dessa, ou melhor, ainda antes dessa, a suposta diferença conceitual entre a cidade e a natureza. Nessa leitura, a cidade é o mundo dos homens e da civilização e a natureza é o lugar dos animais e das plantas.

A cidade vê-se a si própria como como a negação da selva, como o seu absoluto antónimo. No caso da cidade colonial, essa leitura encarna quase que uma ideia de alteridade essencial. Fundar uma cidade no novo mundo constituía tarefa que ao mesmo tempo que se propunha, também se opunha a ele. No âmbito do discurso, esta distinção é continuamente reafirmada ao longo de todo o processo de colonização. Onde a cidade chegava, acabava a selva. 

Comecei a perceber que, neste contraste, a cidade é refém da sua própria imagem, é uma fronteira auto imposta ao que lhe cerca. Contudo, a prática e a história dão-nos indícios de uma vivência bem mais ambígua. O que implica a necessidade de tomar consciência de que na imagem da cidade, que nós assimilamos sem a devida crítica, há uma cristalização que não vê o quanto ela própria sempre se deixou contaminar pelas naturezas e diferenças que, mais que a envolvem, fazem parte dela. Neste sentido, comecei a tentar pensar o processo ao contrário, procurando perceber não o que a cidade levou para a selva, mas o que a selva trouxe para a cidade.

Essa procura conduziu-me a um conjunto de leituras, que foram novas para mim, mas muito impactantes. Entre as quais quero fazer referência, em especial, a um livro lançado por Stefano Mancuso em 2020, que se intitula La pianta del mondo, a planta do mundo. Para os que não o conhecem, Mancuso é diretor do Laboratório Internacional de Neurobiologia Vegetal da Universidade de Florença e tem feito vários artigos científicos e ensaios divulgando o seu trabalho acerca das plantas e do papel fundamental que desempenham na construção e na história da vida no nosso planeta. No prólogo desse livro ele questiona se seria a sua paixão pelas plantas o que o levava a vê-las em toda a parte, mas logo conclui que não, com um argumento arrasador: as plantas representam cerca de 85% da biomassa do planeta; os animais representam apenas 0,3%. Em síntese, e citando-o “É natural que qualquer história que aconteça no nosso planeta tenha, de uma maneira ou de outra, as plantas como protagonistas. Este planeta é um mundo verde; é o planeta das plantas. Não é possível contar uma história acerca dele sem incluirmos os seus habitantes mais numerosos” (Mancuso, 2020:10). 

Contudo, esta híper presença gera, paradoxalmente, uma espécie de invisibilidade. Por um lado, as plantas, submetidas ao genérico do coletivo, não se distinguem bem entre si, só os que as estudam reconhecem as suas particularidades. Por outro lado, na base dos estudos humanos está uma vincada tradição antropomórfica que tem o homem como padrão de leitura da maioria das ciências (e das analogias que elas utilizam, excluindo normalmente deste modelo as plantas). Além disso, e retomando o que já tínhamos dito acerca das cidades, há a implícita hierarquia que coloca o mundo dito natural supostamente submetido à civilização e à razão humanas. É neste cenário que as plantas, embora tão presentes, desaparecem. Convém começarmos a vê-las. Até porquê, em última instância, devemos a nossa própria presença no planeta terra ao processo, iniciado e mantido pelas plantas, de produzir o oxigênio que é indispensável à nossa sobrevivência. 

3-     Não menos surpreende foi ter eleito a mandioca, como tema central. Porquê o seu interesse por esta planta?

Aqui penso que posso invocar claramente o meu interesse pelas questões vinculadas ao património. A primeira razão para ter escolhido a mandioca é, de certo modo, um vínculo pessoal, identitário e memorial com o seu cultivo e com a produção de farinha. Como disse, sou natural de Belém do Pará e passei a minha infância imersa na cultura amazónica, onde a mandioca e todos os seus produtos são, não apenas a base da nossa alimentação, mas, literalmente, as nossas raízes. A mandioca que eu quis trazer como objeto de reflexão é, neste sentido, uma espécie de retrato, um cartão de apresentação. A segunda razão, é que mandioca talvez seja um dos melhores exemplos para confirmar o argumento de Mancuso de que não vemos as plantas e que sabemos muito menos sobre elas do que devíamos. Posso afirmar que muito pouca gente no Brasil sabe, verdadeiramente, como se faz farinha de mandioca (embora a consuma quase todos os dias). No mundo, como deve imaginar, serão muito menos. A terceira razão, não menos importante do que as outras duas, é discutir a relação que desde o início do processo de colonização do Brasil se estabelece com a mandioca, onde está implícita uma clara apropriação de um legado cultural indígena que, ao mesmo tempo que se dá, é sublimada por uma leitura hierárquica, que tem como elemento de comparação sobretudo o trigo.

Importa constatar que grandes historiadores, da história das trocas comerciais e da alimentação, incluindo Fernand Braudel, tenham destacado os processos de seleção e domesticação das culturas do trigo, do arroz e do milho, justamente vistos como bases não só alimentares, mas comerciais e literalmente culturais das civilizações da Europa, Ásia e América, respetivamente. Até o açúcar ou o café foram assim vistos, enquanto produtos de sustentação económica do Brasil e bases da cultura brasileira. Neste quadro, a mandioca continua, de certo modo, injustiçada. É uma espécie de recalcamento coletivo que envolve, precisamente, a verdadeira filha da terra. 

Com efeito, a produção da farinha de mandioca é, ainda hoje, totalmente dependente da herança e dos conhecimentos indígenas. Nada foi aportado pelo colonizador. Trata-se de um processo que embora tenha sido sempre visto como primitivo é na verdade extremamente complexo, uma vez que implicou um longo conjunto de experiências dos povos nativos que não só foram capazes de transformar uma raiz potencialmente venenosa em alimento básico da sua dieta como, além disso, desenvolveram métodos de aproveitamento praticamente total da planta. A estaca do caule serve ao plantio, as folhas são comestíveis e da raiz tira-se tudo. Do suco faz-se o tucupi e da decantação dele, a tapioca; da polpa faz-se a farinha e da farinha mastigada faz-se cauim. E tudo se come e se bebe. E tudo literalmente gira à volta desta raiz que deveria ser lida como uma “planta de civilização”, no mesmo sentido em que Braudel refere aos outros cereais antes citados (o trigo, o arroz e o milho).

Vale a pena referir à domesticação da planta. A minha principal fonte é um texto do biólogo e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazónia, Charles Clement, que passo mais ou menos a citar. O processo terá começado provavelmente há 10.000 anos. A mandioca silvestre crescia mais como um cipó do que como arbusto, a raiz que crescia para baixo era muito fina, como um dedo. Em algum lugar na floresta Amazónica, alguém arrancou estas raízes e levou-as para casa para comer. Essa raiz era cheia de veneno (ácido cianídrico). Mas as comunidades aprenderam como o eliminar, deixando a raiz de molho, depois ralando e amassando até a obter a massa que podia ser cozida ou tostada e comida. Durante o processo, os restos da planta que iam sendo lançados no quintal iam gerando novas plantas, mais produtivas. As raízes eram maiores cresciam para baixo e para o lado, mais de uma no mesmo pé e em forma de arbusto e, sobretudo, foram ficando e menos venenosas. A explicação é que ali beneficiavam dos nutrientes do lixo orgânico. Assim nasce a mandioca mansa, a macaxeira. Isto tudo não parece complicado, mas demora muito tempo e pede sobretudo que os grupos façam trocas entre eles para ir apurando e multiplicando o processo. E aqui entra sobretudo o papel das mulheres que ainda hoje continuam a fazer isso, ofertando e trocando mudas (estacas) entre si e discutindo as suas características. Entretanto a mandioca mansa foi ocupando espaço social, gerando as comidas e as bebidas que se fazem com ela. 

O interessante é que, não se sabe quando, mas provavelmente há uns 3 ou 4 mil anos, alguns grupos começaram a plantar a macaxeira mais longe do seu quintal e perceberam que, como ela era mansa, os animais também gostavam de a comer, o que fez com que a recolha fosse mais difícil e sobrassem para os humanos sobretudo as mais amargas. Aí começa um segundo processo de domesticação da planta que, a partir da macaxeira, voltará a obter a mandioca brava, tão cheia de veneno quanto a mandioca silvestre, não só para proteger a safra do assalto dos animais, como também gerando variantes mais produtivas, resistentes e resilientes aos solos menos bons. Podemos assim dizer que a mandioca foi domesticada duas vezes, uma para ser mansa e outra para ser brava e isto parece-me em si excepcional, como processo de cultura.

4-     Esta não seria uma problemática mais de estudos agronómicos?

Sim, e naturalmente tem sido. Os agrónomos, os botânicos, os biólogos, os arqueobotânicos e todos os estudiosos das plantas são os especialistas desta matéria. Eles são os que as veem de perto e que as tem procurado conhecer, com um imenso trabalho já feito. Eles vão na frente. Mas a questão é precisamente romper este quadro de leitura unicamente especializada e garantir que todos nós vamos sabendo mais sobre as plantas e sobre as relações que estabelecemos não só com elas, mas entre todos os seres vivos do planeta. O próprio Mancuso é um dos interessados em quebrar a barreira da paradoxal invisibilidade das plantas, levando-nos a (re)conhecer o que nos devia ser evidente. Posso contar uma anedota clássica para ilustrar: dois peixinhos passeiam no oceano, um nadador se aproxima e pergunta – como está a água? Resposta dos peixes – que água?

Note bem que não tenho qualquer intenção de reclamar um conhecimento que não tenho. É mesmo na condição de quem ignora que falo. Mas quero ler, quero conversar com quem sabe. E nestas conversas, entre pessoas de diversas áreas de conhecimento e interesses, entre gentes de diferentes culturas, que muitos novos conhecimentos se produzirão. Digo diferentes culturas incluindo o sentido literal de cultivos das próprias plantas, que se espalharam pelo mundo todo, do novo ao velho, do velho ao novo. E nós que dizíamos que elas não saíam do lugar!

5-     Outra coisa, num mundo cada vez mais urbanizado, qual a relevância dos estudos sobre a mandioca que você desenvolve?

Volto ao exemplo das povoações da Amazónia para percebermos a dimensão histórica dos processos de urbanização. Sem entrar em detalhes, a criação e o manejo das roças da mandioca, que eram uma das bases de estruturação do território das comunidades nativas, também foram fundamentais para a implantação das novas vilas que ali foram criadas durante o período colonial. Ainda que o paradigma colonial diga que as cidades nada devem à selva, na verdade, importa, cada vez mais, descortinar as práticas e processos que evidenciam não só a apropriação efetiva por parte dos nativos dos elementos discursivos do urbano, transformando-os e tomando-os como seus; assim como também aqueles outros cuja base reside nas suas lógicas de percepção e relação com o ambiente, ou seja, no conhecimento que tinham e têm dele. 

De certo modo, o que nos cabe ver não será talvez como os colonizadores fundaram vilas em um ambiente que para eles era desconhecido (ou que encarnava a imagem da alteridade), mas como os nativos criaram, no seu ambiente conhecido, as novas vilas que eles ajudaram a construir. Poderíamos, meio provocadoramente perguntar: afinal, quem ensinou quem? Este exemplo é um exemplo, de uma pergunta que pode e deve ser repetida em diferentes contextos e com muitas variantes e acrescentos, ao longo dos tempos e dos lugares.

6-     E Cabo Verde nesta História?

Cabo Verde já faz parte desta História! Está no meio do Atlântico, uma das grandes avenidas das muitas viagens feitas pelas plantas ao longo da Idade Moderna. No caso da mandioca, como todos sabemos, ela também se mudou de armas e bagagens para cá, integra muitos pratos da alimentação caboverdiana e já está confortavelmente instalada inclusive na cachupa. A origem da introdução da mandioca em Cabo Verde, como em outros países africanos, terá sido provavelmente o Brasil, dado que a farinha de pau era parte integrante da dieta nos navios vindos de lá desde o século XVI, (os que serviam o tráfico e outros também). Mas não é impossível que, pelo mesmo motivo, ela possa também ter dado outras voltas antes de se instalar, posto que se afirma que o seu cultivo regular em Cabo Verde é relativamente tardio. Ainda há muito por estudar sobre o assunto, em especial neste olhar a partir da história, os que se interessarem são bem-vindos. 

Mas não é só sobre a mandioca que importa estudar, é sobre as muitas trocas e processos que se foram estabelecendo ao logo do tempo entre as plantas e os locais incluindo nesta expressão tanto as condições geográficas e climáticas, como as populações de cada lugar, gentes e animais. Perceber como as plantas e as pessoas e os animais se foram adaptando uns aos outros, ou foram disputando espaços, etc. Há ainda resquícios de uma leitura que se mantem em posições de alteridade e hierarquia para falar da natureza que precisa ser superada.

7-     Há perspetivas de diálogo com historiadores e outros professores da Uni-CV sobre esta matéria?

Tenho certeza que sim. Aliás, quando estava a preparar o programa com a Professora Antonieta, disse que gostaria de trazer estas questões para discutir com os alunos e colegas em Cabo Verde porque queria partilhar a minha experiência e convocar a deles para aprender sobre a mandioca em Cabo Verde. Mas também porque tenho a convicção de que Cabo Verde tem, enquanto país, na sua essência, uma base cultural muito ligada a terra, que o mantém ainda próximo do verde que traz no nome. Não podemos deixar perder este vínculo. 

8-     Até que ponto a Humanidade tem hoje consciência da necessidade de uma gestão sustentável do património vegetal, que, como mostrou na sua intervenção é o “nosso suporte básico de vida”. Arrisco-me a acrescentar uma questão: qual é o papel das universidades na criação e aprofundamento desta consciência.  

Sinceramente não sei até que ponto, no seu todo, e em termos relativos e proporcionais, a humanidade tem efetiva consciência desta necessidade. Sei que o caminho vem sendo feito e que as universidades têm inquestionavelmente uma responsabilidade e um papel a cumprir neste processo. 

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